O Biatüwi não é apenas um restaurante. É, na verdade, uma casa de comida indígena. Tem diferença, como ressalta o coordenador João Paulo Lima Barreto – ou melhor, Yupuri, como é chamado na língua tukano. Um restaurante tem suas próprias lógicas e burocracias. O Biatüwi também, mas ele se enquadra fora da rota estritamente comercial. Aqui, a comida é feita por indígenas de acordo com a tradição: ela deve nutrir tanto o corpo quanto a alma.
Localizado em uma rua pacata e estreita de pedras no centro histórico de Manaus, a alguns passos do Marco Zero da cidade – onde ficava um antigo cemitério indígena -, o casarão roxo e branco com três janelões adornados por azulejos azuis abriga tanto o Biatüwi como o Bahserikowi – Centro de Medicina Indígena.
Inaugurado há menos de um ano, em novembro passado, é necessário entender o que é o casarão para se compreender um pouco mais da casa de comida indígena. Antes de receber o Centro de Medicina, o local foi um ponto comercial de produtos indígenas, que chegou a um fim. Passou por um período de desuso e foi ocupado por alguns membros da comunidade.
Hoje, o casarão pode ser visto como um espaço vivo, em constante transformação. João Paulo, que além de coordenador também é doutorando em antropologia social, categoriza o recinto como uma casa “que coloca em prática a cultura indígena na cidade”.
Em abril, a prefeitura inaugurou no Marco Zero a Aldeia da Memória Indígena, fixando o entorno como um espaço de manifestação cultural dos povos originários, literalmente no coração de Manaus. “Queremos ocupar esse lugar com feiras, festivais de música, gastronomia indígena, com todas as nossas práticas culturais”, declara o coordenador.
O casarão
Cedida pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, a construção é dividida em cômodos de pé direito alto, como nos casarões antigos ainda sobreviventes da cidade. O local guarda artesanatos e artefatos indígenas nas paredes e prateleiras – alguns também para venda. Todos os membros da equipe, seja da cozinha ou não, são indígenas. Duas são as etnias que convivem ali: Sateré-mawé, do Baixo Amazonas, e Tukano, do Alto Rio Negro.
Após a entrada, a primeira porta à esquerda abriga um cômodo que, de cara, fascina quem chega aqui: um calendário cosmológico ocupa quase totalmente uma das paredes, com desenhos das constelações que regem o tempo e o ciclo da natureza segundo as crenças dos povos.
O cômodo seguinte, no centro da casa, é onde ocorrem as consultas com o pajé. Simples, o espaço tem duas cadeiras, uma de frente para a outra, separadas por uma mesinha de centro. As consultas ocorrem ali mesmo, abertas, em meio ao cotidiano do local e da chegada de visitantes. De um jeito ou de outro, os que se sentam com o pajé dizem sair transformados.
A cozinha e o alimento
Assim, é preciso entender o funcionamento de todo o espaço para começar a compreender a casa de comida. Com apenas algumas mesas disponíveis no último cômodo do casarão, lustres trançados em arumã suspensos no teto iluminam o salão e compõem a decoração minimalista.
A cozinha está logo atrás. É possível vislumbrar seus detalhes e o vai e vem da equipe através de aberturas na parede. Um detalhe desperta curiosidade nos mais atentos, que traz mais uma vez a cultura indígena para dentro da cozinha: um moquém adaptado sob uma coifa ao lado do fogão.
Tecnologia nativa de conservação, cocção e defumação, o moquém do Biatüwi é uma grelha de madeira quadrangular de três andares, em que se pode conferir os peixes enrolados na folha de cacau ou de cupuaçu que são servidos à mesa.
Aqui não há muitas adaptações, já que os pratos refletem fielmente uma parte da tradição e da alimentação indígena. Enxuto, o cardápio traz combinações potentes entre peixes, caldos apimentados e acompanhamento de formigas.
Mais do que um condimento, a pimenta é vista como ingrediente que purifica e fortifica aqueles que a consome, assim como a formiga sahai, que são ricas em proteínas e encontradas no interior da floresta ou nas áreas de capoeira dos roçados antigos.
Servida numa cuia, há a quinhapira de tambaqui ou de matrinxã, com o peixe mergulhado num caldo apimentado com tucupi preto e sal acompanhado de formiga sahai (saúva) e uma fatia de beiju. Saboroso, ele é servido individualmente e, como diz a tradição, é uma receita tipicamente servida para aqueles que viajam e para aqueles que chegam, como forma de despedida ou de boas-vindas.
O filé de tambaqui puquecado, assado na folha de cupuaçu ou de cacau e finalizado com formiga sahai, assim como a mujeca de matrinxã, um caldo apimentado engrossado com goma e peixe desfiado, são igualmente imperdíveis. Para complementar, nunca é demais adicionar aos pratos a farinha ovinha Uarini, supercrocante e saborosa. Entre os detalhes, os talheres são embalados em folhas.
Entre as bebidas, experimente o aluá (fermentado de abacaxi), o tarubá (fermentado de mandioca), ou ainda o sapó (guaraná natural ralado na língua do pirarucu).
Todos os ingredientes e matérias-primas são provenientes de comunidades indígenas familiares, processo que, inclusive, ajuda a manter os laços entre os nativos e a reiterar o papel da floresta: ela é a entrada de tudo para a casa e para os indígenas. Dentre todos os ingredientes e condimentos, o único industrializado usado aqui é o sal.
Comida como existência
A cozinha é capitaneada pela chef Clarinda Ramos, da etnia Sateré-mawé. De voz mansa, ela fala de seu povo e de sua história com empolgação. Para ela, João Paulo e a equipe, a casa de comida é uma maneira de (re)afirmar suas existências, trazendo para o centro da mesa – e de Manaus – parte de sua cultura através da comida.
É um local em que tanto os indígenas quanto a própria comida falam por si, sem narradores e narrativas distorcidas. Assim, é válido ressaltar que os alimentos no Biatüwi não são exóticos: eles refletem toda uma cultura alimentar diária dos povos originários.
“Na medida que vocês entenderem que povos indígenas têm outro modelo de vida, outras concepções de vida, de alimento, de cuidado e de limpar o alimento, por exemplo, a gente vai conversar”, diz João Paulo.
Para colocar o projeto em pé, porém, passaram por algumas barreiras. Como explica Clarinda e João Paulo, eles possuem todo o conhecimento advindo da floresta, mas não o dinheiro e o maquinário para abrir um ponto de comida no centro da cidade. E foi aí que a chef paulistana Débora Shornik entrou na jogada.
O que era para ser uma viagem pessoal de um mês no Amazonas acabou virando quase nove anos em solos amazônicos, com sua mudança de São Paulo para o maior estado em extensão territorial do país, em 2012.
Em Manaus desde 2016, ela comanda o Caxiri, imponente restaurante de comida amazônica ao lado do Teatro Amazonas, um dos mais belos cartões postais do país. Após conhecer João Paulo e ter um maior contato com povos indígenas, ela percebeu a falta de um espaço gastronômico próprio deles na cidade. Deu-se, assim, o pontapé inicial para a criação do Biatüwi.
No período de restrições por conta da pandemia, toda uma capacitação da equipe que hoje trabalha na casa foi feita dentro do próprio Caxiri. Hoje, Débora não dá pitacos na cozinha nem tem relação direta com as receitas, em que presta apenas um papel de consultora e assessora.
Assim como ela, os visitantes que comem na casa de comida indígena e observam as consultas do pajé mergulham num espaço-tempo diferente.
Esqueça a correria, uma “alta gastronomia” ou agrados. Aqui, entra-se em contato com outra concepção do tempo e da coletividade, em que a comida, acima de tudo, une as pessoas e transpassa por questões sagradas de fortalecimento e de proteção.
Biatüwi – Casa de Comida Indígena
Rua Bernardo Ramos, 97 – Centro, Manaus – Amazonas / Aberto de quinta-feira à sábado, das 11h30 às 15h.
Reservas via WhatsApp: (92) 98832-8408
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