Um fato muito importante passou despercebido entre os goianenses no ano passado de 2021, inclusive entre os mais astutos da análise sociocultural, que são poucos. Muitos veículos de comunicação noticiaram Pernambuco e Brasil a fora. Mas, em Goiana, o silêncio foi gritante. É que os aspectos relevantes nem sempre são tão evidentes assim. Até mesmo o mais ágil observador pode deixar escapar algo tão evidente, como o ascender do vagalume, ou o bater de asas de uma borboleta.
Trata-se de algo que reflete a essência de Goiana e como tal precisamos de uma digressão histórica. Pode parecer cansativa, e, no entanto, não convém franzir a testa nesse momento. Façamos a devida introdução.
Eu gosto particularmente de entender Goiana como uma invenção. Pois é: ela não existia antes dos europeus chegarem nestas paragens. Uma vez disse isso numa palestra e um senhor na plateia retrucou: como pode? Goiana existia sim! Custou-me a explicação. É que os povos que aqui habitavam nem se quer chamavam isso de Goiana.
Aliás, o termo “Goiana”, tal como conhecemos hoje, só foi aparecer como nome designador desse território em meados do século XVII, ou seja, mais de cem anos depois da chegada dos europeus. Inclusive, a primeira menção que temos notícia, encontrada nos catálogos dos jesuítas, é o de “Gueena”.
Goiana é uma invenção que se inicia no século XVI e cuja maior consequência foi a expulsão e extermínio da população indígena em detrimento da implementação, a ferro e fogo, de um sistema produtivo: a plantação de cana e a produção de açúcar.
Goiana produziu açúcar na larga noite dos quatrocentos anos de sua história. Até o final do século passado, duas grandes usinas despontavam no vale: a das Maravilhas e a Santa Tereza. A primeira sucumbiu no início do novo milênio, a segunda, definhou-se há pouco tempo atrás. Depois de quatro séculos, Goiana hoje não produz mais o produto que um dia a inventou e lhe colocou em destaque.
Porém, por outro lado, cerca de mil veículos são produzidos por dia na Jeep. Algo diferente emergiu no cenário e ainda não estamos sabendo lidar com esse novo paradigma. Ainda que sinta certo remorso, Goiana é a cidade da Jeep e não há como não levar isto em consideração em qualquer análise que façamos dela nos dias atuais.
Indo agora as “vias de fato”, a notícia é a seguinte: no mês de março de 2021 a Stellantis, empresa que agrupa as marcas Fiat, Jeep, Peugeot e Citroen, comemorou a marca de um milhão de veículos produzidos no Polo Automotivo Jeep situado na cidade de Goiana. Talvez como uma “comemoração” do sucesso, a empresa anunciou que até 2025 investirá R$ 7,5 bilhões com foco no desenvolvimento de novos produtos.
Desde a instalação da fábrica, uma nova realidade do mundo trabalho passou a residir em Goiana. A imagem dos trabalhadores da Jeep e das empresas terceirizadas já está se naturalizando entro nós. Normalizaram-se os vários grupos de operários que ficam nas paradas esperando o ônibus para o trabalho. Tornou-se uma cena comum do cotidiano. Pode parecer bobagem, mas isso tem um impacto enorme em todos nós enquanto sociedade.
A Goiana de hoje, ainda que se comporte como provinciana, é uma cidade diferente de há dez anos quando grande parte da população ou trabalhava na usina, ou no comércio. A impressão é a de que, grosso modo, o goianense virou sinônimo de trabalhador da Jeep. Não há nada de errado nisso, só é diferente de anos atrás.
Eu sei que ainda existe um canavial muito extensivo e que ele ainda faz e fará parte da nossa paisagem. Também sei que há a notícia que a Santa Tereza voltará a moer nos próximos anos. Contudo, já está mais que anunciado que o tempo é outro.
Eu desconfio que seja hora de pensarmos, de uma vez por todas, a Goiana que queremos para o futuro.
Borges de Fraga é goianense, formado em História pela UNICAP, mestrando em História Social pela UFPE e professor efetivo do estado de Alagoas.